Os heterônimos de Fernando Pessoa.


Os heterônimos criados por Fernando Pessoa são vários, mas, os mais conhecidos e mais complexos são apenas três: Alberto Caeiros, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. O primeiro é o mestre de todos, inclusive do próprio poeta que o criou. Mas, veja bem: dizer que Caeiros é o mestre de todos eles não significa dizer que seus discípulos são seus imitadores. Não, nada disto. Cada um tem a sua linguagem, o seu estilo, seus temas e as suas visões de mundo.Dito isto, o leitor pode perguntar: se cada um tinha o seu modo de ser, no que o mestre Caeiros era mestre para os outros? Numa análise mais superficial, poder-se-ia dizer que o paganismo de Alberto Caeiros era a linha mestra que seus discípulos seguiam, inclusive seu próprio criador, Fernando Pessoa. No posfácio do livro “Poemas Completos de Alberto Caeiros”, Álvaro de Campos diz o seguinte quanto à isto:
“O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo. O Ricardo Reis é um pagão, o Antônio Mora é um pagão, eu sou um pagão: o próprio Fernando Pessoa seria um pagão, se não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro.”[1]
Já com esta afirmativa, podemos concluir que não era o paganismo o que validava o seu status de mestre entre os poetas heterônimos de Fernando Pessoa e o próprio criador destes. Se fosse isso, o poeta português seria pagão, e não um poeta preocupado com a verdade, com o mistério da vida, e portanto, metafísico.Quando digo isto, não estou aludindo aos poemas de Fernando Pessoa em si, mas à sua eterna ocupação em volta dos mistérios da vida, das questões metafísicas como a pergunta pela verdade, pelo sentido da existência, pela moral e etc. Tanto é que ele quase nunca assinava o seu nome abaixo do que escrevia: se ele fosse pagão, niilista, ateu, o que fosse, teria deixado o seu testamento humanitário registrado como deve de ser pelos filósofos e poetas: assinado em baixo.
Portanto, Fernando Pessoa, ao contrário da maioria dos seus heterônimos, não era pagão. Mas assim, o que fazia dele um discípulo de Caeiros? Ou melhor: o que fazia Caeiros ser mestre de todos os heterônimos e inclusive para o seu próprio criador? Aqui entra algo genial em Fernando Pessoa. Eu nunca vi em lugar algum o criador ser menor que a criatura. Provavelmente, nunca haverá. É uma lógica absoluta, sem embustes. Mas Fernando Pessoa quis fazer essa brincadeira, e quem notou, descobriu, certamente admirou-se.Caeiros era mestre de todos por duas razões: por uma teoria poética e por uma “filosofia de vida”. Vamos à primeira.
Para Caeiros, o sentir é a matéria-prima da poesia. Poeta que não sente, não é poeta. Poeta que não diz o que sente, não é poeta. E todos os heterônimos – e inclusive Fernando Pessoa – seguiam isto à risca, sem vergonha de expressar os seus sentimentos. É aqui a parte fundamental para ele não seguir o simbolismo da época. O que fez dele um poeta moderno. O que fez de Carlos Drumont de Andrade não ser um Cruz e Souza, por exemplo.E sentia. Em quase todos os poemas de Caeiros, ele pede para as pessoas não pensar, porque “pensar incomoda como andar na chuva.” Para Caeiros, é preciso ver sem pensar, e caso for pensar, o melhor é pensar em nada, porque há metafísica bastante em não pensar em nada. É preciso ver, sentir e viver naturalmente.
Caeiros vivia numa aldeia simples, era simples, e feliz. E é aqui que, fora da poesia, ele era o Mestre no sentido mais profundo da palavra.Viveu feliz, alcançou a plenitude da vida sem religião alguma. Era um Cristo liberto, que não precisava falar do Pai, que é preciso amar o próximo como a si mesmo, e todas essas leis espirituais. Nada disto. Apenas expressava o seu amor pela vida, a sua humildade, e todos viam a sua Verdade, e a ela se curvavam. Pois, Caeiros era, além de humilde, uma pessoa sem ambições, contente com o que tinha, orgulhoso de ter a sua própria visão de mundo e poder colocá-la em versos, ainda que numa linguagem simplória.
Caeiro era feliz. Álvaro de Campos, infeliz. Fernando Pessoa, infeliz. Provavelmente, Ricardo Reis também foi infeliz, embora de todos, parece ter sido aquele que mais se aproximou da perfeição do Mestre. De tudo isso, pode-se concluir que não há verso genial mais feliz que a felicidade. Que não adianta ser o melhor poeta do mundo quando não se é o melhor poeta para si. Coisa que de fato, ao menos Fernando Pessoa e Álvaro de Campos não conseguiram ser.
O primeiro, sempre isolado, solitário, triste, desiludido muitas vezes, e nunca negou isto em suas poesias. O segundo, sempre revoltado, em febre, delirando, de vida desorganizada, falida, adiada. Eram portanto discípulos com problemas, que nunca conseguiram por em prática os ensinamentos do professor. O Fernando Pessoa, àquele aluno lá no fundo da sala, sozinho, prestando atenção mais em si que à aula do professor, e, lá do outro lado, também no fundo da sala, Álvaro de Campos jogando papel embrulhado nos coleguinhas, respondendo mal ao professor, acusando todo o mundo de injustos e sem misericórdia.
Já Ricardo Reis, esse deve ter assistido às aulas lá na carteira da frente, anotou tudo, tirou notas boas, mas no fim das contas, nunca soube se ter feito isto foi o melhor para a sua vida, apesar de ter sido médico, de ter sido erudito. E, o pior de tudo, só para fechar este pequeno artigo, vou dizer que eles foram tão maus discípulos, que nem no velório do Mestre compareceram...
Glauber da Rocha.
[1] PESSOA, Fernando. Obra Poética. p. 248.

1 comentários:

Anônimo disse...


Amigo, que comentário, hein! Só você mesmo, Glauber, para colocar numa mesma sala de aula Alberto Caeiros, Ricardo Reis e Álvaro de Campos rsrsrs. E ainda mais com Fernando Pessoa como professor! Só podia ter saído dessa sua cabeça de ficcionista mesmo...
Sua amiga Débora.



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