A escritora Ana Maria Gonçalves e a blogosfera.


Agora vou falar de uma escritora que me fascinou deveras. O nome dela é Ana Maria Gonçalves, do blog 100 Meias Confissões de Aninha. Começou a escrever por causa do seu blog – na adolescência, assim como a maioria dos adolescentes, escreveu uma coisa ou outra, nada excepcional, nada de sonhos querendo o estrelato, e por isso não foi adiante. Foi o blog que acabou fazendo de Ana Maria Gonçalves uma escritora de peso na Literatura Brasileira de Hoje Em Dia. Primeiro, confessando uma coisa ou outra, nada de mais, para depois, com o tempo, for pegando gosto pela coisa e começar a sonhar com romances, pesquisas, e profissionalizar-se como escritora.
Quando viu, Ana Maria acabou sendo tal como esses escritores e escritoras que decidem abandonar tudo por causa da Literatura. Gente assim, só pode ir longe. E de fato, é o que todo escritor deve fazer. Porque ter duas personalidades, uma para um trabalho, e outra para o mundo das idéias, com tempo torna-se esquizofrenia. Não dá. É loucura na certa. Eu mesmo, que ainda não ganho o meu pão com a escrita, já estou para lá de louco. No fim das contas, fico sempre sozinho, que nem o Zéfiro. Quem é que gosta de conversar sobre Literatura? Um ou outro...
Ana Maria Gonçalves fez isso: abandonou a sua carreira sólida na área de publicidade, vendeu tudo o que tinha e foi para a Bahia, lugar em que ela nunca havia pisado os pés. Vão vendo a loucura. Lá ela se estabeleceu, deu três meses de “férias para si mesmo”, como diria Santiago Nazarian, e não fez outra coisa senão esquecer o mundo da vida empresarial, que é muito mais louco e absurdo que o mundo das Letras. Descansada, lançou-se à pesquisa, a fim de elaborar seus livros. Ainda na compulsão pró-ativa herdada da vida infernal, não dava folga, não sabia a hora de parar, e até hoje não sabe.Escreveu dois romances: “Ao Lado e à Margem do que Sentes por Mim” e “Defeito de Cor”. O primeiro, e do qual falarei aqui, Ana Maria Gonçalves publicou por conta própria, e teve um retorno bem maior do que esperava. Hoje esse romance encontra-se íntegro em seu blog, e vale a pena ler: se a linguagem de Santiago Nazarian é envolvente, eletrizante, fazendo das palavras trilhos para o seu trem criativo, a linguagem utilizada por Ana Maria nesse romance é cativante, delicada, polida, sem pressa. Parece uma dessas mulheres que separa os grãos de feijão na mesa e depois de cozinhá-los e digeri-los deita-se à rede e fica pensando, satisfeita, namorando seus próprios pensamentos.
O romance tem como mote ou tema principal a questão mais austera na Literatura: o amor. Um tema que aparentemente é fácil de ser tratado – e não é à toa que quase todo mundo acredita-se poeta quando ama – mas que no entanto, quando colocado de maneira a não cair no comum, acaba tornando-se muito difícil. Eu mesmo, aliás, nunca ousei tocar nesse assunto: é colocar o título Amor lá em cima da página em branco para ter a certeza de que a primeira frase não sairá.E para falar deste tema, podemos escolher qual visão sobre o amor tomar, pois, há muitas: a machista, a religiosa, a psicanalítica, a filosófica e por aí vai, até o infinito. Ana Maria preferiu à psicanalítica, principalmente àquela que retorna aos gregos, no mito de Narciso. Como conta a lenda, este considerava-se tão bonito, mas tão bonito que um dia, após olhar-se pelo espelho do lago, caiu dentro dele e morreu afogado...
Ana começa então o seu romance com uma “cena do lago”. Não vou referir-me à Ana enquanto pessoa, mas à Ana enquanto personagem-narradora, pois é este o nome da protagonista da história que Ana Maria Gonçalves escreve. Portanto, não vou interpretar o livro como sendo uma auto-biografia, nem que ele tenha traços auto-biográficos, ou que ele seja um livro de memórias, assim como o é Infância, de Graciliano Ramos. Vou interpretá-lo como um livro de ficção, que tem um tom memorial, e que o fato de a personagem-narradora ter o mesmo nome que a escritora não quer dizer necessariamente que a Ana retratada no livro seja a Ana autora.E a personagem-narradora Ana conta que aos dois anos de idade soltou-se da mão de sua mãe e entrou no lago. Aqui, ela quer dizer algo. O quê será? Que foi quando, na desobediência, na teimosia, ela expressou aquilo que ela vinha a ser depois, na fase adulta? Ou que Ana, quando ama, joga-se sem pensar no perigo e nas conseqüências? E que quando ama, na verdade, está amando apenas a si mesmo? Não sei. É sempre muito difícil dizer qualquer coisa a respeito de seu romance, cheio de incógnitas, de nuanças, de mistérios a desvendar.Isto porque ela trabalha com mito, tanto o grego quanto o brasileiro: Ana refere-se a dois mitos nossos: o de Iemanjá, como deusa e rainha do mar, e de João da Draga, um homem que aspirava areia do leito do rio usando uma máquina, abastecendo as construções que se erguiam no vilarejo – este, coitado, enlouqueceu depois de ter “visto” Iara, e a sua máquina, funcionando sozinha, separou o rio Misericórdia em dois: o rio que se segue, e o rio que ficou parado, transformado em lago, um lago que todos chamavam de prainha, a prainha de Niterói, o qual Aninha quase afogou-se.
Esse lago ficava num vilarejo chamado Ibiá, lugar de pouso para os tropeiros de comitivas que vinha de Minas Gerais. Nesse vilarejo que Ana viveu a sua Infância, onde ela conheceu o primeiro amor, um menino de sete ou oito anos no máximo, dois a mais que ela, chamado B., que fez com ela um pacto de sangue jurando matrimônio e amor eterno. Os dois, enfim, acabam tomando caminhos diferentes. Ana vai morar em São Paulo, onde vive a adolescência, faz faculdade e casa-se, divorciando-se depois. Após essa separação, Ana muda-se de volta para Ibiá, atrás do seu primeiro amor, e ali fica esperando por ele – o enredo, em “Ao Lado e à Margem do que Sentes por Mim”, é portanto a espera do amor.
Enquanto ela espera, vai vivendo num ciclo entre lembrar e pensar a sua vida, escrever cartas de amor a B. – a qual ela não endereça e nem coloca no correio, porque nem sabe qual endereço – e viver no pequeno vilarejo, misturando-se com o povo, conhecendo gente. Em especial, conhece Zé, e faz uma grande amizade, porque este se parece muito com ela, e uma narcisista, afinal de contas, só pode fazer amizade com quem se parece muito: o Zé, assim como ela, espera por um amor, por uma mulher, especificamente, chamada Lorerei, ou melhor, Mercedes, que era, assim como Zé, artista de circo. O romance dos dois não deu certo, e agora Zé espera por ela, que deve estar lá do outro lado do Continente, do Oceano.Zé é considerado pelo resto do vilarejo como um “doido”. É “doido” porque vive isolado – é narcisista demais também – e faz poesias. Será que os poetas são narcisistas? Não sei, parece que sim. Ou são altruístas demais para sofrerem tanto com uma coisa que não dá privilégio algum? Zé é doido que nem Ana. Talvez, Ana só não é considerada doida porque trabalha, porque ainda se esforça em conviver com os outros, como por exemplo, a dona Isabel, uma espécie de secretária dela.Em suas lembranças e memórias, logo fica nítido a sua personalidade: platônica, romântica, individualista, propensa à solidão.
Numa palavra: a mulher que não conseguiu deixar de ser menina: a eterna princesa à espera do príncipe encantado, da vida encantada, do Perfeito, do Belo. O problema é que nunca as coisas são como ela quer: seu primeiro beijo foi roubado por alguém completamente diferente dela, um moleque bagunceiro, popular, líder de classe, burro. Teve nojo, raiva, revoltou-se. Não porque M. era tudo isso, uma vez que, no final das contas, em seu íntimo, ela gostava. Mas pelo simples fato de que ele não a avisou que lhe beijaria... – se isso aconteceu, não sei: o que sei é que eu nunca avisei nenhuma menina que iria lhe beijar. Ninguém avisa. Ninguém diz: agora vou te beijar... E Ana sabe disto. Contudo, ela queria ser avisada... E aqui está a graça de sua personalidade.
Perdeu a virgindade com C., o seu professor de Matemática. Outra metáfora? E foi nele quem colocou seus primeiros chifres... Mais outra? Aliás, Ana adora metáforas, assim como adora também fazer observações curiosas, como a que aparece logo no início do romance: “as coisas importantes que nos acontecem dependem apenas de um derradeiro segundo, nem mais, nem menos.” Fala também sobre a terça-feira, que não é um dia especial: não é dia para começar nada, ou para terminar algo. Não é dia para casar, nem para parar de fumar ou algo do tipo. Terça feira é o dia mais insignificante da semana...
Ana gosta de usar a metáfora dos trapezistas, e coloca outra observação curiosa: a maioria deles são da mesma família: pai, mãe, irmãos, irmãs. É preciso muita confiança para jogar-se ao outro. Amor é isso. Contudo, Ana joga-se ao amor sem confiar. Não lhe interessa se a pessoa do outro lado do trapézio irá lhe apanhar com a mão forte, segura... Essas e outras curiosidades vão povoando o seu romance, e sempre nos lugares certo, quando o texto pede. Eu poderia falar mais aqui, mas perderia a graça para o possível leitor.Depois que o professor começou a traçar planos para a sua vida, aonde ela teria de deixar de seguir seus sonhos, abriu mão deste. Queria fazer faculdade, e logo após o fim deste namoro, encontramos Ana morando numa república, dividindo o apartamento com outras garotas. É quando descobre definitivamente que prefere viver isolada, que tem gosto pela solidão. Já as outras: sempre animadas, divertidas, promovendo festas. Finalmente, quando ela viu que não dava mais para conviver com muitas pessoas a sua volta, resolveu morar sozinha. Na véspera de sua partida, num barzinho onde foram fazer a festa de despedida, Ana conhece aquele que seria o seu futuro marido, chamado R – se me permite a brincadeira, Ana, no sentido bonito da expressão, deitou-se com o alfabeto inteiro...
O casamento, é claro, não dá certo, e de repente vemos Ana voltando para a terra de sua Infância, onde amou B. Convive com os moradores, interessa-se pelas histórias e estórias do povo, relata os costumes, o sincretismo religioso de Ibá, as supertições, como por exemplo a de que quando um padre e duas freiras rezam durante a travessia da valsa, é azar, pois foi assim num Dois de Junho, quando um barco naufragou e morreu muitas pessoas: nesse dia, havia um padre e duas freiras rezando.Outro mito, ou lenda, é a do peixe-boto. Ana conhece um pessoalmente! Chama-se J. Elegante, educado, do tipo que dá flores. Queria Ana. Mas a dona Isabel, sua secretária, avisou-lhe: é um “boto”, um homem-peixe, que engana as mocinhas inocentes, tirando-lhes a virgindade, engravidando-as, para depois sumir, ou, porque é rico, pagando para elas fazerem o aborto.
No fim do romance, B não aparece. Ela não fica com Zé, não fica com o “boto”, não com R., apesar de ter “casado” com ele. Foi uma relação limpa, ninguém saiu ferido – aqui a personagem-narradora demonstra a sua maturidade – que teve inicio, meio e fim. Fica sozinha, como essas tias solteiras, como um monte de tias solteiras que tem nessa cidade e vivem deixando Santo Antônio de cabeça para baixo, a fim de que este arrumem logo um casamento para elas. Ana acaba só, como sempre gostou de viver. Ana acaba só porque talvez não acredita no amor. O amor, na verdade, assim como para Machado de Assis, só é possível na Infância. Bentinho só amor Capitu, Ana só amou B.
Glauber da Rocha.

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